25 de outubro de 2010

senhora da rua.

 É uma senhora ordinária, no sentido de banalidade da palavra, que se acotovela no parapeito da janela do quarto de sua casa, com vista para a rua. A rua tem um nome e chamam-lhe a rua da Subida. E a senhora, que nome tem mas não interessa sequer para história, costuma ficar a ver as pessoas subirem a ladeira e descerem a Subida. Engraçado não é?,  as contradições literais em que se pode entrar por causa de um nome apenas…

A senhora é da rua. 
Vê as gentes passar com o tempo e o mundo dela gira com esse passar e com esse ver.  A vida dela é absurda e de tão absurda que é, quase nem existe.

É uma sonhadora e imagina as histórias de vida das pessoas que percorrem a Subida.

Ora são uns velhotes ainda apaixonados ou uns idosos suficientemente cansados das loucuras do amor para procurarem outro parceiro para partilharem as arrastadeiras.
Ora são uns jovens de calças rasgadas e cabelos desgrenhados pelas imbecilidades que acabaram de fazer no parque de cedros e amores-perfeitos no cimo da rua ou são uns casais de moços apaixonados que acabaram de descobrir no amor a sua doçura aliada à insensatez.
Ora são pessoas com sacos na mão ou pessoas com sonhos na cabeça, pessoas com caras tristes ou pessoas que vivem da comiseração alheia, pessoas com sorrisos de quem tem uma vida esplêndida ou pessoas que escondem os problemas por baixo da pele inventada.

A senhora da rua anda o dia inteiro à cata dos sonhos, dos problemas, das alegrias e das tristezas dos outros… com esperança que isso resolva a sua vida.
E sabe bem que a sua postura é inadequada para um ser humano - ou pelo menos para um ser humano que queira ser feliz - , mas ainda assim ali continua, presa ao parapeito corriqueiro e à Subida que se desce também.

Às vezes abre a janela para ouvir as vozes dos domingueiros que se passeiam na Subida todos os dias da semana. 
E copia as palavras para cada livrinho.
As bonitas para o livro de cabeceira, as insensatas não copia. As sábias para o livro de cabeceira, as parvoíces não copia. As apaixonadas para o livro de cabeceira, as de desprezo não copia.

O livro de cabeceira tem os sonhos e ela sonha que alguém lhe diga todas essas palavras que copia da rua, do mundo dos outros, do mundo onde as pessoas até descem a rua Subida.
A simpática senhora sabe no fundo que cada pessoa também olha a rua para viver a sua vida, em busca de um modelo de personalidade melhor, em busca de soluções ou reconfortos ou apenas para passar o tempo vazio dos seus mundos, vendo os tempos vivos dos outros.

Ali, àquela janela e na rua da Subida, o que a senhora parece não saber é que o mundo é cá fora, no redoma de vidro e dos cortinados encarnados… mas quando souber, quando tiver já escrito no livrinho de cabeceira as vezes suficientes de que o mundo está à espera para ser vivido, quando rasgar os cortinados e a vergonha que lhe atravessa, infundada, a alma, sairá rua fora, subindo e descendo a rua, passando à frente das janelas de outras senhoras da rua que vêm a vida passar, subir e descer na Subida, que esperam as suas reviravoltas também. 

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