28 de maio de 2010

Vou vetar.

É incrível como nós somos seres de hábitos.
Não vestimos verdadeira e generalizadamente hábitos na sua forma óptima para conjugar o verbo vestir, mas vestimo-los, numa combinação de um estranho andante e evoluído primata que se afeiçoa às novidades e as entranha, depois de as estranhar, no seu eu diário ou ocasional regular.


Dividimos a sociedade em camadas distintas de opiniões.
Há quem seja contra as mudanças ontem, hoje e amanhã. Há quem não goste de divergências do normal ontem, as aceite hoje e amanhã as implemente, primeiro tímida e depois afincadamente. Há depois quem as faça ontem, as faça hoje e amanhã de novo feitas sejam as mudanças pelos mesmos.

Parece-me a mim que a camada intermédia se alarga num conceito de maioria. E os extremos ficam assim, nas pontas, onde se estreitam as quantias.

Ter hábitos é seguro e só os que são capazes de arriscar se aventuram em fazer mudanças. E por isso esses ficam nas pontas.
Continuar nos hábitos, quando podemos calcar caminhos por traçar, também é um risco. Ir por onde todos vão, encontrar o que todos encontram, colher o que todos colhem, ver o que todos vêm… Corre-se o risco de ser o que os outros são. Corre-se o risco de se ser só mais um no meio de tantos. E corre-se o risco que depois da partida se seja não aquele que foi, mas só mais um que deixa espaço para quem há-de vir.

Os hábitos vêm das mudanças. São mudanças que se acomodam porque foram capazes de nos cativar e nós fomos capazes de as aprisionar inteiras naquilo a que chamamos de rotina.
E a rotina, pese embora seja segura, cansa às vezes.
Cansa ela, cansam os hábitos, cansam as mudanças que os provocam e cansamo-nos nós que provocados fomos pelo destino das coisas que descontroladamente controlamos.

Como há hábitos, cansaços e pessoas, há padrões de hábitos, de cansaços e de pessoas.

Há o branco que veste bem com o preto mas a branca que já não casa com o preto. Há o fantástico no ele ser maior e ela ser mais pequena. Há o fantástico nele sair e ela ficar em casa. Há o bonito sem adereços conventuais. Há o bonito nos traços normais. Há o ‘que bem que fica’ em falar igual. Há o ‘maravilhosamente correcto’ em fazer o que toda a gente acha bem. Há o perfeito na Barbie que fica com o Ken.

A culpa é dos fabricantes de bonecas, apetece-me dizer, que fazem a Barbie para casar com o Ken. E aí, aprende-se, ou desaprende-se conforme o ponto de vista, a ver a vida com olhos já cansados de novidades. E fecham-se sempre os olhos às mudanças, às necessidades de ser diferentes, de pensar e agir diferente.
Porque é que a Barbie tem que ficar com o Ken? Porque é que o Branco fica melhor com o Preto? Porque é que só o tradicional permanece nas boas graças?

Mas nós, como seres de hábitos, habituamo-nos ao facto de haverem padrões desnecessariamente incorrectos. Habituamo-nos a que se ditem as regras do mundo e se aceitem se contestar.

Eu hoje, veto-as.

Faço uso daquilo que me foi concedido assim que nasci. Faço uso da minha condição feliz de habitante de um mundo inteiro. E veto-as.

Veto as regras e os padrões e os hábitos e as vulgaridades.

Hoje veto tudo o que não está bem e veto muita coisa.

Por mim, estas regras não passam.

E ainda que promulgadas sejam, eu farei um mundo à parte. Um onde a mudança viva sempre que a rotina falhe.

16 de maio de 2010

É sim.

As pessoas não gostam, usualmente, do escuro.
É que no escuro não se vê.
Não há formas, não há imagens nem visualizações do caminho.
Só podemos fazer previsões e seguir os instintos, só esperar que o que nos vai surpreender para lá do que não se vê não seja pior do que a previsão estranha que do desconhecido fazemos, apenas acreditar que no escuro não há só fantasmas esquecidos, só memórias que incomodam…


E amar é um pouco assim.
Amar é viver no escuro.
É ter os olhos abertos e sentir com o coração, orientando-nos (ou desorientando-nos) sem poder viver do que se vê, porque afinal, quando se ama, nem sempre o que se vê se torna claro. Vê-se e fica-se na dúvida se foi real. Vê-se e fica-se na dúvida se não terá sido imaginação de um dos nossos meros milhões de neurónios mais sentimentais e ingénuos.

Amar é assim.
Acreditar no que não se vê.
Confiar que está ali, mesmo sem ver.
Mesmo que não hajam sempre os abraços ou as demonstrações de carinho.
Mesmo que nem sempre as mãos se unam quando se queriam unidas.
Mesmo que as palavras não sejam ditas, orgulhosamente, de um modo meigo, para se mostrar que o afecto é real, que o amor existe, ali.
Amar é sentir esse amor nos dias preenchidos de luz e brilho e saber que esse sentimento nos deixa sinceramente felizes. E nos dias cinzentos, em que o escuro se abate, amar é continuar o sentimento de dias felizes, sem o poder impedir e sem poder evitar que dias sim e dias não, gostemos ou odiemos, o facto de amarmos alguém, de coração.

Amar é viver ansiedade, desejo, saudade, orgulho, confusão, medo, ciúme, passividade, alegria, confiança, desconfiança, angustia, paz… e vivê-lo tudo ao mesmo tempo e muitas vezes, no escuro.
Porque quem ama vive no escuro.
Quem ama, vive o que não se vê.
Lá no fundo, vê-se sempre.
Mas também não se vê.

Vêm-se os olhares e neles o sentimento de leitura de alma. Vêm-se os sorrisos de cumplicidade ou de piadas privadas. Vêm-se os toques discretos de sentimentos que incomodam a compostura.

Mas o amor, isso que nem se sabe o que é, não se vê, no seu estado mais puro. O amor fica no escuro. Age no escuro. Monta palco e actua lá, no escuro. Cai no escuro. Morre no escuro.

E o escuro não é onde ninguém fica cego.
É só onde ninguém sabe onde vai parar.
É onde se escondem os medos e os desejos.
É onde se duvida se se ama e se se terá caminho para andar.

É por isso que o amor é o mais perfeito sentimento. O melhor e o pior num só quarto escuro. O melhor e o pior num só pacote de chá que se toma, ocasionalmente ou inesperadamente. O mais doce e o mais amargo, no mesmo prato. O mais fácil e o mais difícil. O amo-te e o odeio-te. O quero-te e o não posso querer. O tenho-te ou será que não tenho? O abraça-me e o vai-te embora. O olha para mim e o esquece que já nos vimos. O vem ter comigo e o desaparece do mundo. O amas-me e o não me amas. O confio e o mas mesmo assim… O eu quero ser e o não sei se deva. É a luz e as trevas.

E tudo isto, num só pequeno e imprevisível sentimento. Amar é assim. É definir e acrescentar uma premissa final onde afirmamos que nada sabemos do que é amar.

Amar é viver no escuro. E às vezes temos medo do escuro.

É. É difícil amar.

12 de maio de 2010

Estrangeiros.

Passeavam-se em terras comuns aos dois mas eram os dois filhos do mundo. Apesar de presos a uma terra por um laço de comunhão de luz dada, o seu berço era originalmente, o ser. Acima de qualquer nacionalidade, ambas diferentes e opostamente interessantes, eram os dois filhos do cosmos, nascidos das estrelas, baptizados na aurora e crescidos sobre o manto da humanidade e dos valores de amor por ela dados.


Unidos no laço estreito de denominação natural das províncias e afastados pelos laços de ilusão que em volta dos andantes seres se acometem, apesar de se conhecerem e reconhecerem, eram estrangeiros na terra um do outro.

Sem mapas, sem indicações de profecias, sem dicas para alcançar o ‘x’ de um itinerário imaginado no estrelado do céu de uma noite de chuva, são estrangeiros perdidos na terra um do outro.

Pouco têm além da crença que os une e nem isso é finito, já que as crenças voam com o vento e as uniões só precisam de um ‘des’ para se tornarem em desuniões. De bolsos vazios como a mente em dias cinzentos, com as mãos descontroladamente irrequietas e os olhares perdidos nos horizontes da procura, caminham lado a lado, nas ruas de terra abatida pelos poetas que a palmilharam em busca das odes e das odisseias.

Não se orientam pelo sol nem pelas estrelas porque para se quererem orientar eram precisos objectivos a cumprir. E amor e objectivos conflituam-se no campo do rigor e do sentir, onde inflexibilidade e extravagância sentimental não combinam nem convivem nem coexistem de todo.

Calçam as botas. Descalçam as botas, sacodem as pedras e voltam a calçá-las. Põe o chapéu, tiram o chapéu, caminham ao vento sem botas e chapéus como se nus estivessem e sabem que vestidos ou não, completos ou não, pertencem ao cosmos, à crença, ao Criador, aos destinos…

E é por isso que sendo estrangeiros na terra um do outro, sem se conhecerem, se amam perfeitamente num acaso chamado hoje, num desconhecido chamado aqui, se vivem e se exploram, como quem descobre os mares de há cinco séculos.

E cada passo lhes parece uma rota nova, que traz aos estrangeiros perdidos nas terras um do outro, as especiarias de outrora, os tecidos do conforto, os odores do exotismo, as vistas dos novos mundos.

Caminham, lado a lado, passo sobre passo. Recuam, avançam. Sorriem e desviam os olhares.
Sem bússolas nem mapa, de mãos nas algibeiras, caminham lado a lado, dois estrangeiros, apaixonados.

10 de maio de 2010

pedra filosofal.

Hoje foi um dia cinzento, como tantos outros dias o são. E não seria um dia nada mais que cinzento não fosse o cinzento do dia. Uma coisa é ser um dia cinzento e outra é ter cinzento no dia. Quando se tem cinzento no dia é porque não houve brilho suficiente.


Hoje deixei a porta da câmara secreta entreaberta e parece-me que os avanços na descoberta da pedra filosofal se retraíram. E esta pedra filosofal não é só uma pedra. É a minha pedra. A mais bonita das que até hoje já vi e a que mais me fez estudar, pensar, esboçar, barafustar de um modo totalmente afortunado. E esta minha pedra ainda não está bem descoberta e muito menos está sequer definida em si. Além de saber que estou a projectar a felicidade num amanhã, através e com ela, não sei bem o que pode ser este meu tesouro.

Na minha câmara estavam outras coisas também… Havia o saco dos valores conquistados e a prateleira de princípios ensinados pelo mundo. Havia os sonhos do mundo melhor, os planos para o mundo perfeitamente correcto e os projectos de como transformar os mutantes andantes e falantes deste sítio onde vivemos em pessoas do mundo e para o mundo. A acrescentar estavam também os tesouros já limados, afincadamente polidos e devidamente emoldurados.

Porque é que só a minha pedra pequenina e incompleta teve que cair? Ou foi o vento? Não, nunca é o vento. O vento só sopra, não transforma as pedras em pó nem deixa que os planos para as ter serem amachucados.

Até já pensei em não me importar. Em esquecer a pedra e em ignorar no que ela iria, possivelmente, resultar. Chorava uns dias a sua perda, sentia a sua ausência e tentava deixar que a vida me mostrasse outra pedra bonita. Mas quem me diz que haverá outra pedra bonita? Quem me diz que haverá uma pedra que me faça saber o que está me fez? E quem me diz que eu só choraria uns dias, só sentiria a sua ausência de ânimo leve?

Já pensei em correr atrás de quem a levou, perguntar onde a deixaram e depois trazê-la de volta.

Já pensei em recomeçar. Se eu gosto dela e se acho que ela vale a pena… Se eu não perdi tudo o que ganhei dela… Se eu acho que vivo melhor com ela do que num mundo em que ela não exista…

A minha pedra filosofal é muito mais que qualquer outra pedrinha mágica. Além de ser a minha é a que eu quero ter. E não é contraditório em si querer algo que é meu, porque já vive no meu mundo.

E agora, antes que me fuja mais alguma coisa vou tentar fechar a porta da câmara secreta e voltar ao meu plano, com o caderno de apontamentos na mão, com os ouvidos a tentarem aprender o ritmo, com os olhos fixos no infinito que é nosso e com a vida presa nos limites que separam a existência da vida.

6 de maio de 2010

saudades dos sonhos.

Lembro-me de quando era criança. Lembro-me de quais eram os meus sonhos, do que eu queria para a vida. Lembro-me de ser decidida e de ter objectivos. Claro que naquela idade nem as decisões iam além do sabor do chupa-chupa e da franja que eu própria cortei quando a minha mãe me queria infligir fotografias horríveis para a posterioridade nem os objectivos passam depois da meta de um casamento perfeito com alguém que me amasse desmesuradamente.


Hoje tenho saudades desses tempos. Tenho saudade da simplicidade de pensamentos que atrás ficou. Tenho saudades da ignorância que me permitia acreditar em amores inocentes e possíveis. Tenho saudades de tudo aquilo que eu acreditava ser eterno, imortal.

Tenho saudades da fé. Da fé no mundo e nas pessoas. Principalmente, tenho saudades de acreditar nas pessoas e no meu amor e no delas.

Tenho ainda um sonho guardado. O sonho do amor-perfeito. Porque os contos de fadas não foram feitos para dar às crianças expectativas inocentes. Mas sim, para lhes mostrar que há historias felizes, que nem tudo é negro, que a vida pode e deve ser perfeitamente vivida, tal como nos contos de fadas.

Esse sonho guardado não se mantém intocável. Mudei pormenores e deixei o felizes para sempre, acrescentando o enquanto durar.

Sonho com o meu amor-perfeito. Com aquele que será a sério. Com aquele que me fará perder as incertezas.

O meu amor-perfeito dir-me-ia olhos nos olhos que me amava.
Dar-me-ia a mão enquanto passeássemos ao fim-de-semana, abraçar-me-ia em frente aos amigos e teria orgulho no amor que sentisse.
Escrever-me-ia cartas se soubesse escrever com o coração, pintar-me-ia quadros se soubesse pintar com o coração, cantar-me-ia canções se soubesse cantar com o coração.
Levar-me-ia a sítios sem perguntar onde eu queria ir, teria uma surpresa para mim, far-me-ia feliz dia após dia, sempre sem entrar no ritmo de me ter como adquirida.
Teria ciúmes, pegar-me-ia ao colo e rodopiar-me-ia sem se importar com o estatuto de miúdo que essa atitude lhe daria. Seria indiscreto comigo, seria discreto com os outros.
Teria consciência e não me faria ficar confusa.
Seria inteligente e nunca me tentaria enganar com mentiras estupidamente fáceis de descobrir.
Seria fiel, com o olhar, com o confiar, com o amar.
Dir-me-ia sempre a verdade e seria querido ao ponto de perceber até onde poderia ir a cada instante.
Não esperaria que eu tomasse sempre iniciativa.
Não quereria que eu fosse igual às suas pretensões, não me mandaria ali ou acolá mas faria acordos vantajosos para ambas as partes.
Saberia conquistar-me dia após dia, como se precisássemos de nos apaixonar todos os dias, a primeira vez.

O amor-perfeito que eu guardo, nos sonhos, saberia que seriamos nós contra o mundo. Porque o amor seria tão impossivelmente grande e perfeito, que tudo aquilo que pudesse existir contra, não teria qualquer significado.

O meu amor-perfeito, seria sem dúvida, aquele a quem eu me daria de inteiro. A quem eu me iria dedicar, a quem eu iria prometer, a quem eu quereria agradar e conquistar a cada instante, sempre mais. O meu amor-perfeito seria assim, pleno.

Tenho saudades de ser pequena. Saudades de não saber o que era estar angustiada e de só pensar para fazer equações. Saudades de acreditar que o amor é possível e é fácil, que faz sempre bem e que nos dá a serenidade e a confiança que anima o espírito.

Tenho saudades dos sonhos. Tenho saudades de acreditar que um dia todos se iriam realizar.