11 de fevereiro de 2011

senhora do ora.


Era uma senhora de idade, com expressões demarcadas no rosto e no peito anos vários de recordações de vida. Nascera naquela vila e ali fizera uma história com partidas e chegadas, com perdas e vitórias, com poesias e teatros, com melodias e silêncios.
Ora vivendo, ora padecendo. Ora vivendo, ora padecendo.

Tinha uma mão generosa, repleta de moedas para quem batesse ao portão, cheia de histórias para quem quisesse uns minutos de atenção, cheia de sorrisos para quem quisesse passar um serão.
Ora só, ora no mundo. Ora só, ora no mundo.

Perdera o amor da sua vida numa guerra aberta entre o orgulho e a falta de valores, mas estava de consciência tranquila que pese embora o espaço vazio na cama, tinha sempre mil poemas nos lábios e o perfume de outrora ainda a acompanhava.
Ora recordava, ora vivia. Ora recordava, ora vivia.

Era tantas vezes condenada mesmo que nem feitiços soubesse fazer. Ou porque não vestia preto ou porque não ia à igreja ao domingo e até porque das opiniões alheias não queria saber. Não que fosse segura de si, não que os outros não importassem... Mas ela era demasiado sonhadora para perder tempo a explicar os seus ideais a quem não os queria compreender.
Ora tentava, ora se resignava. Ora tentava, ora se resignava.

Sabia cozinhar, fazer tricô e tocar umas modinhas no piano. Já fora de falar francês, espanhol e português com um sotaque de serrano. Lera Pessoa, MRP e até a Bíblia, pelas palavras e não pelas caras… apenas para se alimentar de letras, de pensamentos e opções.
Ora culta, ora nativa. Ora culta, ora nativa.

E enganava-se quem pensasse que a senhora era senil por não pertencer a um lado naquela sociedade. Recebia com facilidade jovens incompreendidos e pessoas conservadoras que se tinham esquecido de como compreender. Gostava de casamentos, namoros e romances às escondidas. Aceitava os desamores, as separações e dificilmente concordava com intrigas. Era amiga do sacristão e do dono do bar. Olhava a estrada antes de atravessar. E quando morresse já sabia o que queria usar.
Ora ciente, ora demasiado consciente. Ora ciente, ora demasiado consciente.

Um dia escreveu um livro de poesias, de histórias e desenhos pequenos. Contou a sua história e reproduziu-a de modo a ofertar, anonimamente fragmentos do seu testemunho nas caixas de correio, entupidas com publicidade, das pessoas da sua vila.
Ora rua abaixo, ora rua acima. Ora rua abaixo, ora rua acima.

E guardou para si a última folha. Onde se lia que o amor é como uma droga que não se perde, que não se troca, que não se deixa... Onde se lia que a vida precisa de ser aceite e nós para a vivermos de nos aceitar precisamos.
Ora sejamos de um lado, ora sejamos do outro. Ora sejamos de um lado, ora sejamos do outro.

Ela era a senhora da rua, do mundo e da vida. Percorrera Paris, Londres e Nova Iorque, fora à Escócia, a Itália e a Macau, estivera na Grécia, na Áustria e em Banguecoque. Tirara fotos, coleccionara 'recuerdos' e só Ele sabe como os seus desejos ainda eram despertos.
Ora sonhando, ora vivendo.  
Ora sentando-se, ora precavendo-se. 

Sabendo decerto, que no dia em que fosse tocada pela última vez numa roca envenenada tal e qual Bela Adormecida, o faria com um olhar sereno e um sorriso bem leve, consciente da sua vida, da sua chegada e da sua partida… e sabendo que os seus valores lhe haviam permitido tornar-se nela, naquela senhora.
Senhora de si, senhora do mundo, senhora de si, senhora dos outros.  

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